O som dos motores cortando o ar, o cheiro de borracha queimando na pista e a vibração do asfalto sob os pés: a Fórmula 4 (F4) não é apenas uma corrida, mas sim um palco onde as futuras estrelas do automobilismo começam a forjar suas trajetórias. A cada volta, o rugido dos carros ficava mais intenso, e a multidão sentia a adrenalina pulsar a cada curva. Para os pilotos, cada reta e curva se tornava um novo desafio, com adversários prontos para ultrapassá-los a qualquer momento. Com talento, determinação e coragem, Rafaela Ferreira cruzou a linha de chegada não apenas como vencedora, mas como a primeira mulher a conquistar a F4 Brasil. Sua vitória não foi apenas uma conquista pessoal, mas uma quebra de paradigmas, um marco para as futuras gerações de mulheres que sonham em dominar as pistas. Em cada volta, Rafaela trouxe os olhos do mundo para a sua direção. Além de conquistar o primeiro lugar nas pistas, ela também garantiu seu lugar na Fórmula 1 Academy, dando um novo e promissor passo em sua carreira.
Desde criança, o asfalto quente e o som dos motores se fez presente nos caminhos que a içarense Rafaela Ferreira percorria. Seu pai, que adorava a adrenalina que as pistas permitiam, foi a pessoa que a apresentou ao mundo dos carros. O kart era como um hobby para a família, era como uma “onda dentro de casa”. O pai para permitir que a filha tivesse chance de correr um pouco nos carrinhos, a deixava “dar uma voltinha no colo dele, deixava segurar o volante”. Assim, ela tomando “gosto desse mundo”, até que chegou um momento que decidiu pedir um kart para os pais. A promessa foi feita, mas não cumprida. Na época, Rafaela tinha apenas cinco anos, então o medo de que algo viesse acontecer foi maior. “Falaram que era muito nova, que era um pouco perigoso”, lembra Rafaela.
Com o passar dos anos, a filha assumiu todo o entusiasmo que o pai tinha pelas corridas e começou a querer estar mais presente nas pistas, ainda mais obstinada a continuar por aqueles circuitos até mesmo nos finais de semana. Nesse momento, a família percebeu que era vontade da filha de participar dessa vida, não apenas pela influência do pai. Também, já não era mais visto como um mero passatempo, era uma paixão genuína. “Com oito [anos] comecei a competir e eu comecei a ir bem, comecei a gostar”. Nessa época, a garotinha que havia começado a correr apenas por diversão, e agora estava começando a competir, passou a ter o seu talento reconhecido. “Aí fui crescendo assim dentro do automobilismo. Comecei a ir para o estadual, para o nacional e daí chegou um certo momento da minha vida que percebi que eu queria fazer isso com uma forma profissional”.
Um hobby de infância à uma Carreira
Em um período em que todos no Ensino Médio estão pensando qual será o próximo passo, enquanto a maioria dos amigos estava pensando em vestibulares e futuros tradicionais, havia uma jovem de quinze anos traçando um caminho diferente, com muito mais curvas e desafios. Nesse período, ela já estava se destacando no Kart nacional, mas queria se dedicar ainda mais. Todavia, ainda existiam os seus estudos para conciliar com a rotina do automobilismo. Visto que por conta das suas viagens para as competições, a questão das faltas ao colégio, era algo que precisava ser contabilizado. Dificuldades com os estudos em relação aos trabalhos e as provas, não era algo que precisava ser muito analisado, pois ela conseguia manter o foco nas entregas e nas notas. “Às vezes eu fazia na pista mesmo pra conseguir tá entregando e enviando para eles”.
Por outro lado, havia o problema de encontrar um colégio que apoiasse os atletas, “que realmente acreditem que a gente tá se esforçando no nosso esporte pra chegar em algum lugar e não por causa de um hobby, né? Então foi mais essa parte do colégio mesmo em que eu senti uma certa dificuldade”, explica. Mas nada desses obstáculos a impedia de seguir com seus objetivos. “Eu sabia que eu queria ser pilota de carros, e estava treinando para isso. Naquela época, não tinha muita certeza de “vou querer ser pilota de fórmula de carro”. A única certeza que tinha era que queria “viver no automobilismo”.
Apoio dos entes queridos para manter o foco
Então, com toda intensidade e competitividade, chegou o próximo degrau na sua jornada, a entrada da F4 Brasil. Nessa época, o pai já estava mais adaptado com a ideia da filha trabalhar com automobilismo. A mãe, por outro lado, precisou ser convencida aos poucos, visto que tinha outros desejos para o futuro da sua filha, o desejo de que ela se tornasse médica. “Mas, graças a Deus, eles me apoiaram muito”. O pai investia na sua carreira, enquanto a mãe ficava com os cuidados fora das pistas. “Ela me ajudava na alimentação, me ajudava a manter o foco, a rotina das coisas”. Como uma constante que a mantinha focada com todo o seu suporte, os entes queridos davam todo o apoio necessário. “A minha família sempre me apoiou e eles sempre vão em todas as minhas corridas, nos treinos. Às vezes, eu vou à cabine sozinha. Mas nas corridas eles vão sempre, estão sempre torcendo.
Rotina, treino e velocidade: a disciplina que leva para as curvas da vitória
O caminho até o pódio começa muito antes do piloto entrar no carro de corrida. Rafaela informa que existe um preparo físico específico para os atletas dessa área, visto que é necessário “estar bem fisicamente, ter força para aguentar”, mas também existe um padrão para que que não haja muito ganho muscular ou massa, para que desta forma o piloto consiga caber dentro do carro e não tenha a mobilidade afetada. No caso da içarense, a sua personal trainer, especialista em casos do automobilismo, preparou uma rotina de treinos. A atleta faz cinco vezes por semana, musculação; Três vezes na semana, cardio separado. Além de utilizar o simulador em casa e realizar treinos de pescoço e tempos de reação.
Além de correr, fazer musculação e treinar agilidade, ela realiza exercícios específicos que simulam os movimentos que fará nas pistas, desenvolvendo a resistência necessária para suportar as forças G nas curvas e a intensidade das corridas. “Ele tem todas as pistas do Brasil e do mundo também, então a gente pode estar treinando ali nas pistas, né?”. Nesse sentido, o simulador entra em cena para apresentar ao piloto as características que um pista desconhecida possui. Em outras situações, os pilotos podem estar jogando com outras pessoas para se preparar para as corridas. “Então normalmente eu treino assim, dou uma andadinha antes para estar conhecendo, pra estar pegando o jeito, e depois marco junto com o meu treinador”. Desta forma, o treinador tem a possibilidade de lhe informar qual o estilo de marcha deve ser usado, ou a forma que o volante deve ser virado. “Então, a gente treina junto com outra pessoa para estar aprendendo, evoluindo mais rápido, chegar lá na pista e já estar preparado para ela”, destaca.
Todavia, Rafaela aponta que apesar de ter uma pré-ideia do que será a corrida, apenas no momento em que está na pista se sabe ao certo. “É diferente porque tem muitas condições, o vento pode estar diferente, a pista pode estar diferente, pode ter um ponto que tá um pouquinho mais sujo. O simulador é tudo muito ideal, na pista a gente conta com várias situações diversas que podem estar acontecendo. Mas eu acredito que ajuda muito mesmo!”, ressalta.
Uma marca na história do automobilismo
Por anos, a içarense estava acostumada com as pistas dos karts, mas chegou o momento que precisaria se adaptar a uma nova estrada. Os carros da F4 traziam toda uma transição com toda a sua potência, suspensão ajustada para a velocidade extrema e aerodinâmica pensada para contornar as curvas com precisão, parecia um salto gigantesco. Mas em certa etapa realizada no Velocitta, autódromo em Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, mostrou que toda a sua dedicação valeria a pena.
O barulho ensurdecedor dos motores, a vibração do asfalto, o cheiro de borracha queimando no ar, todos os presentes e aqueles que assistiam a transmissão da F4 Brasil em meados de junho estavam prestes a presenciar um feito histórico. Com uma largada que poderia definir tudo, Rafaela liderou a corrida de ponta a ponta. Como ela havia sido pole position, a sua preocupação era que quem sai na frente acabava sendo caçado pelos outros adversários. “Nos outros eu tava atrás e eu que queria o primeiro, eu que tava caçando. Naquele ali, eu tava sendo caçada. Então, acho que tem uma pressãozinha a mais. Mas eu andei certinho, não cometi nenhum erro!”.
Ao se aproximar da última volta, a tensão nas arquibancadas era palpável. A multidão vibrava, cada segundo de aceleração agora se tornando uma eternidade. A piloto não pensava em mais nada a não ser em cruzar aquela linha em primeiro lugar. “A gente teve algumas disputas de posição, mas consegui manter a liderança e terminar em primeiro”. Quando cruzou a linha de chegada, o som dos motores foi abafado pelo grito da multidão e pela explosão de alegria que tomou conta de seu corpo. A pilota que estava no segundo ano da F4 Brasil já havia se destacado no ano anterior por ser a primeira mulher a subir ao pódio, e então em 2024 realizou o feito de ser a primeira mulher a subir ao lugar mais alto do pódio da categoria reconhecida e homologada pela FIA. “Foi muito emocionante, porque foi a minha primeira vitória, ver todo mundo vibrando junto comigo, ver meus pais super felizes, e ver todo o esforço que a gente tinha feito até ali estava valendo a pena, foi incrível!”, evidencia.
A próxima parada nas pistas: da F4 Brasil para a F1 Academy
Com uma vitória histórica e a quebra de barreiras no automobilismo, a jovem piloto não apenas conquistou o pódio, mas também atraiu os olhares internacionais. O rugido dos motores na F4 Brasil ainda rodeava a sua mente, mas quando um programa de desenvolvimento bateu à sua porta para apresentar o futuro da maior categoria do automobilismo mundial, ela mudou os seus horizontes. “Essa oportunidade chegou quando eu comecei a andar na F4 Brasileira e tava conseguindo pódios e tudo mais, e daí chegou a oportunidade. Recebi o e-mail, e comecei a entrar em contato com eles, passei por uma seletiva, fui na fábrica, fiz simulador, depois fiz treino na pista e fui selecionada como uma das meninas para estar representando a Visa [Cash App RB], representando todo o time da Red Bull [Racing], tudo com eles”, esclarece.
Se o som dos carros na pista era sua motivação, agora era o desejo de desafiar os limites do seu próprio talento que a impulsionava para o próximo passo. “Já tava meio que na minha mente como objetivo então, eu não fiquei com muito medo assim, porque eu queria isso”. Agora, Rafaela entrou no processo de preparação, com treinos e reconhecimentos de pistas com a equipe da Red Bull Racing. Para ela, a sua rotina não mudou completamente do que já estava acostumada, mas ainda assim teve algumas alterações. “Os treinos na pista que eu achei uma grande diferença, parece que eles realmente levam a sério. Cada treino parece uma corrida, parece que a gente sai pro treino e tá realmente participando de uma corrida assim”.
Entre o volante e a mente: uma luta nas pistas e nas quebras de estereótipos no automobilismo
Com a velocidade extrema, as manobras precisas e a constante pressão para ultrapassar os limites fazem com que cada corrida seja uma verdadeira batalha, não apenas contra os adversários, mas também contra os riscos iminentes que a pista impõe, os pilotos precisam estar com o equilíbrio mental em dia. Rafaela Ferreira, como qualquer outro piloto, precisa não só estar em sintonia com seu carro, mas também com sua mente, sabendo lidar com a pressão, o medo e a adrenalina de forma que não interfira no seu desempenho. “Bom, acredito que sim, com o passar do tempo a gente acaba se acostumando um pouco já com o esporte na nossa cabeça e não parece ser algo tão perigoso. A gente cai na real de que é muito perigoso quando alguém acontece um acidente meio forte, meio grave. Então a gente acaba com a ideia de que é um pouco perigoso. Mas assim, é o nosso esporte, a gente gosta daquilo”. A atleta salienta que todos os cuidados com a segurança dos pilotos são reforçados antes das partidas do motor. ‘A gente usa todos os equipamentos de segurança, o carro é feito de fibra de carbono e é super resistente, então é bem difícil se acontecer alguma coisa muito, muito grave”.
Seja pela pressão ou pela imprevisibilidade das corridas, os riscos são sempre presentes, e até os pilotos mais experientes sabem que, a qualquer momento, uma curva mal executada ou uma falha mecânica podem resultar em colisões dramáticas. Deste modo, Rafaela aborda que o segredo está em manter a calma. “Eu acredito que um acidente durante a corrida que dê pra continuar depois dela é cuidar, manter o controle ali mesmo, manter a calma e focar curva a curva pra continuar e fazer o melhor que der, mesmo se o carro estiver danificado ou algo assim, é se manter calmo e falar, já errei, agora vamos focar para não errar de novo e tentar conseguir extrair o melhor daquilo que a gente tem nesse momento”.
Outro ponto que é necessário manter a garra e o lado sentimental estável está relacionado com os estereótipos que ainda cercam as mulheres presentes no automobilismo. Por muitos anos, o esporte foi visto como algo físico demais, rápido demais, forte demais para ser dominado por uma mulher. Comentários que menosprezam a resistência e apontam a fragilidade das mulheres são mais comuns do que se imagina. Rafaela conta que quando iniciou no automobilismo, há 11 anos atrás, o esporte era fechado para o grupo femino. “Então, eu tive alguns momentos que eu passei por algumas situações desagradáveis”. Ela revela que muitos dos comentários vinham da parte dos pais dos pilotos, que a diminuíam na frente dos seus filhos e amigos. “‘Não vai perder para a menina, hein? Ou se ela te passar na pista, tu pode bater nela’. Então, passei por algumas situações assim, quando eu era menor”.
Dentro desse contexto, a sua jornada nas pistas não se definiam apenas por uma questão de velocidade, mas também se marcavam pela necessidade de provar, a cada corrida, que a habilidade, a coragem e a determinação não têm gênero. “Hoje eu conquistei o respeito, o espaço na pista e o automobilismo vem se desenvolvendo para aumentar a presença feminina no esporte”, frisa. A atleta afirma que atualmente recebe muito mais apoio do que críticas e percebe que houve um aumento de pais, mecânicos e outras equipes torcendo por ela. “Então, é muito legal assim, ver todo apoio que a gente vai receber dentro do esporte”.
Texto: Letícia Cardoso
Fotos: Divulgação/Instagram da @rafaelaferreira.18

