No Brasil, estima-se que existam cerca de 2 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que calcula haver aproximadamente 70 milhões de pessoas com autismo em todo o mundo. Por trás desses números, no entanto, estão histórias únicas e complexas.
Um estudo inédito feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022 e divulgado em maio de 2025 revela que em Santa Catarina 91.588 pessoas foram diagnosticadas com o TEA, o que corresponde a 1,2% da população catarinense. Além disso, os dados apontam que o autismo é presente, predominantemente, no sexo masculino com 62,6%, e 37,4% no sexo feminino.
Diante desses números, para as pessoas que lidam diariamente com o TEA, a vida pode parecer um quebra-cabeça com uma peça sempre faltando. Esse sentimento, que é causado pela dificuldade de se encaixar em padrões sociais, gera frustração, uma revolta silenciosa e o constante senso de não pertencimento. Nesse contexto, receber o diagnóstico de TEA pode ser um divisor de águas. Mais do que um termo clínico, ele oferece compreensão, alívio e um novo olhar sobre si mesmo. E foi isso o que aconteceu com Matheus Dutra, de 23 anos, diagnosticado apenas aos 21, após uma crise intensa de ansiedade em um dia comum de trabalho.
“Eu fiquei no estado de crise por cinco minutos e depois ainda tive uma crise de respiração”, relembra Dutra. Quando decidiu procurar tratamento com um neurologista, a primeira hipótese foi a de que ele tivesse o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), mas a verdadeira causa de seus sintomas só foi revelada depois: o TDAH estava, na verdade, mascarando as características do autismo. A descoberta finalmente explicava as suas vivências de desconexão e oferecia a Dutra uma compreensão mais profunda de si mesmo.
Assim como no caso de Dutra, o diagnóstico de autismo pode surgir após uma jornada de dificuldades e desentendimentos, sendo fundamental que seja feito com calma e clareza. Conforme a psiquiatra da infância e adolescência, Dra. Roberta Parker Nicolau, esse processo inclui a análise detalhada do desenvolvimento da criança desde o nascimento, levando em conta suas reações, sono, rotina, uso de telas e possíveis traumas ou uso de medicamentos.
“É importante ressaltar que o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista é clínico, ou seja, é feito por um médico. Existem exames, como a avaliação neuropsicológica feita por psicólogos, que trazem dados importantes para ajudar no diagnóstico, mas não o definem por si só. Esses testes contribuem para entender melhor o funcionamento da criança e identificar possíveis comorbidades, como o transtorno de déficit de atenção ou deficiência intelectual”, afirma Roberta. Além disso, ela ressalta que é necessário que o diagnóstico seja realizado com cautela, respeitando as particularidades de cada caso.
A um passo da liberdade
“Foi algo muito impactante! Mas depois, cada traço meu, da minha personalidade, cada ponto diferente, até mesmo minha comunicação, [eu] fui percebendo que fazia parte não só do espectro, mas de quem eu sou. E isso acaba englobando e libertando muito”, conta Dutra aliviado. Assim, quando o acesso à informação e à compreensão finalmente chegou até ele, a necessidade de se colocar em situações desconfortáveis e fingir ser alguém diferente desapareceu. “Não precisamos mais usar máscaras sociais”, complementa.
Uma suspeita aqui, outra ali
Um estudo publicado no JAMA Psychiatry em 17 de julho de 2019, confirmou que entre 97% e 99% dos casos de autismo têm uma base genética, sendo que 81% deles são hereditários. Nesse contexto, o autismo, por ser uma condição complexa e multifatorial, resulta de uma interação entre diversos fatores, com a genética desempenhando um papel crucial em seu desenvolvimento. Isso significa que a predominância genética no autismo é significativa, embora não seja o único fator determinante.
Desde os primeiros estudos realizados pelo psiquiatra Leo Kanner, em 1943, até os avanços recentes na genética e neurociência, a trajetória científica em torno do Transtorno do Espectro Autista reflete uma crescente complexidade e aprofundamento. O infográfico da linha do tempo apresenta os principais acontecimentos e descobertas que moldaram a forma como o autismo é diagnosticado, compreendido e tratado na atualidade.

No caso de Dutra, já havia uma suspeita de que ele poderia estar no espectro, especialmente porque seu irmão mais velho é autista, com nível de suporte 2, e sua mãe também, com nível 1. No entanto, durante toda a sua infância, ele foi diagnosticado e tratado apenas para o TDAH. “Talvez fosse um erro da minha pessoa ou do meu meio”, reflete Dutra, evidenciando como muitas vezes as características do autismo podem ser confundidas ou mascaradas por outros diagnósticos.
Para exemplificar, o infográfico abaixo retrata os níveis de autismo.

A pedagoga, especialista em educação especial e TEA, mestranda em neurociências, Estefânia Borges, explica com mais detalhes os níveis de suporte.
Uma luta para se encaixar
“Tem vezes que eu sou muito espontâneo, e tem vezes que eu fico muito imerso e com reflexões reais, porque a pessoa neurodivergente tem um modo de pensar diferente”. Nesse contexto, é comum para o autista carregar muitos pensamentos, o que pode dificultar o processamento deles sozinho. Felizmente, como o seu ciclo de amizade é influenciado por essas condições, há uma aceitação natural da diversidade. Isso permite que as interações dentro deste círculo fluam de forma tranquila, sem grandes dificuldades.
Embora sua rotina siga normalmente, sem grandes dificuldades, Dutra se entristece ao perceber que olhares e palavras de baixo calão, tanto dirigidas a ele quanto aos seus amigos, ainda acontecem. Quando alguém expressa opiniões negativas sobre o autismo, sua percepção é clara: não se trata de uma pessoa mal-intencionada, mas sim de ignorância sobre o tema. “Quando paro para conversar e explicar, a reação geralmente é: ‘Ah, era isso, desculpe’”. Para Dutra, esse processo de compreensão é algo que ocorre a passos lentos.
Quando uma peça encaixa no quebra-cabeça
Esse contraste entre os benefícios e desafios do hiperfoco reflete as complexidades do desenvolvimento neurodivergente, especialmente em crianças. Segundo Roberta, a psicoterapia com foco na Applied Behavior Analysis (ABA), em português, Análise do Comportamento Aplicada, é uma ferramenta eficaz no tratamento de crianças com neurodivergência. Terapias ocupacionais, que trabalham a coordenação e autonomia, e a atuação dos fonoaudiólogos, – fundamentais na comunicação verbal e não verbal – também são importantes. Para casos de hipersensibilidade auditiva e seletividade alimentar, o acompanhamento nutricional é recomendado.
Desse modo, a profissional destaca a importância do diagnóstico precoce e do acompanhamento adequado. “Cada paciente tem um perfil, e terapias como equoterapia ou musicoterapia também podem complementar o tratamento. É claro que não devemos sobrecarregar os pequenos. É preciso respeitar os intervalos, analisar o que é melhor para cada um e definir quantas sessões semanais serão feitas. Nós, médicos, acompanhamos essa evolução e indicamos os próximos passos, com datas e metas bem definidas”, ressalta Roberta.
O amor que tudo supera
Todos carregam uma dor. Algumas delas se tornam mais leves quando encontram o acolhimento de pessoas que oferecem tempo, empatia e compaixão. Entre essas dores, há uma que poucos veem ou percebem: as mães de filhos atípicos. Não foi uma escolha que fizeram, mas um papel que aceitaram com coragem e por amor. E é esse amor que supera, transforma e ensina. A cada dia, Joziani Fernandes da Rocha descobre novas formas de aprender e crescer ao lado de seu filho, Brayam da Rocha Gonçalves. Um menino autista de quatro anos que, com seu jeito único de ver o mundo, também ensina a amar de uma forma única.

Não foi nada fácil para Joziani. Quando descobriu que estava com câncer de tireoide, recebeu outro diagnóstico que lhe tirou o chão: seu filho, Brayam se enquadrava no espectro autista. A suspeita surgiu quando ele tinha apenas um ano de vida — pequenos sinais que, para o olhar atento da mãe, já desenhavam algo diferente. Com um ano e meio veio a confirmação do TEA. Foram duas notícias que mudaram tudo, recebidas quase ao mesmo tempo, exigindo dela uma força que nem sabia que tinha.
A maior dificuldade que enfrentou no começo com o Brayam foi lidar com o Transtorno do Processamento Sensorial (TPS). “Este sempre foi o maior problema dele, principalmente, a questão do toque no pelo do animal. Antes de um aninho ele começou a andar na ponta dos pés, mesmo no inverno, pegava o carrinho, virava para cima e ficava só girando as rodinhas, e assistia à televisão ao contrário”, relembra.
Entre os muitos desafios enfrentados por Joziani, um dos mais marcantes foi a longa espera por uma das palavras mais doces e simbólicas que uma mãe pode ouvir: ‘mamãe’. O atraso na fala, presente em crianças atípicas de nível 3, revelou uma realidade quando soube que Brayam levaria mais tempo para chamá-la assim. Mas não era apenas a fala que tardaria, o contato visual — aquele gesto simples, mas profundamente humano de manter os olhos nos olhos — também se mostrava um desafio para o pequeno.
Mesmo que a dor possa apertar no peito, desistir nunca foi uma opção. Joziani começou a estudar, ler e procurar ajuda de profissionais que pudessem contribuir no desenvolvimento de seu filho. Conforme o tempo foi passando, a mãe continuou educando e celebrando com alegria cada pequena conquista do Brayam.
Hoje, com seus quatro anos e meio, ele consegue cortar o cabelo com mais tranquilidade. Deixa o cabeleireiro cortar seus fios loiros e finos, mesmo tentando se desviar da máquina ou do barulho da tesoura. Mas, isso aconteceu pois a mãe encontrou uma técnica para melhorar a educação sensorial do filho. O manteve com os olhos fixos na tela do celular, e colocou nas suas duas mãos uma gominha e um pente. “Tivemos bastante dificuldade no começo, mas agora ele já consegue ficar com a maquininha ligada. O que ainda incomoda é aquele pente com pelinhos que encosta no corpo dele — por isso ele se esquiva, porque sente como se fosse uma picadinha”, explica.
Pequenas atitudes, grandes avanços no desenvolvimento
Quando o diagnóstico de TEA é feito antes dos cinco anos de idade, há chance de reduzir o nível de suporte da criança, isto é o que afirma a Estefânia Borges, especialista em educação especial e em TEA. Comenta, ainda, que o acompanhamento de um profissional é importante nas fases iniciais do pequeno para ajudar no desenvolvimento. “Eu sempre digo, procure um profissional que trabalhe com um embasamento científico, com coisas que já foram testadas e aprovadas. Seu filho vai deixar de ser autista? Isso não existe. Porque a gente sabe que uma vez autista sempre é autista. A diferença é que a gente espera que ele tenha cada vez menos necessidade de suporte”, afirma Estefânia.
O Brayam, por exemplo, está há três anos na terapia e já apresenta um quadro de redução do nível. Para alcançar esse progresso, foi fundamental o uso de recursos visuais que o ajudam na memorização e no foco. Joziani relembra que um dos maiores desafios foi o processo de desfralde. “Ele não aceitava se sentar no vaso, pois deixava ele desconfortável. Com isso, começamos a usar as peças lúdicas para trabalhar a visibilidade”, acrescenta.
Já seu hiperfoco apresentou sinais aos oito meses de idade. Sem que ninguém esperasse, Brayam começou a fazer leituras e em um estalar de dedos, aprendeu a ler sozinho. A descoberta veio por meio da equipe onde estuda, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), que informou à mãe que ele havia se alfabetizado de forma autodidata. Foi um marco impressionante: no mesmo ano em que pronunciou suas primeiras palavras, já encerrava o ano lendo com fluência.
“Hoje ele é apaixonado por livros. Em casa, pega os livrinhos de historinha e fica folheando, bem concentrado. O tempo todo está falando os títulos de histórias aleatórias ou cantando musiquinha. E tem aprendido muito por meio das músicas que é ensinado para ele. Quando você vê, ele vai pegando o ritmo e já está cantando aleatoriamente. Brayam tem uma boa memorização”, complementa a mãe.
Por outro lado, quando começará a inclusão?
Para as pessoas típicas é normal conviver em um espaço com a televisão no volume alto ou colocar uma música sem ninguém pedir para baixar o som. Só que esta não é a realidade de Brayam, que possui o Transtorno do Processamento Sensorial. Ele escuta até mesmo os barulhos que nem sempre são perceptíveis. Foi somente com a Terapia Ocupacional (TO) que ele teve uma melhora nas atividades diárias, como na parte sensorial e do contato físico com materiais diferentes.
Joziani suspirou, visivelmente abalada, ao lembrar de um episódio difícil: certa vez, o vizinho colocou o som tão alto que Brayam, em total desespero, tentou bater a cabeça na parede. “Às vezes a gente tem essa dificuldade, porque falta consideração, respeito, empatia das pessoas para que a gente entenda, porque eu tenho a placa na frente da minha casa, identificando que eu tenho uma criança autista que não pode som alto e mesmo assim a pessoa fica perturbando”, declara.
São desafios que as mães como Joziani enfrentam todos os dias — não só aos finais de semana, não só em momentos isolados, mas diariamente, desde o acordar até a hora de dormir. Cada pequena conquista traz a sensação de que a vitória está próxima e que, aos poucos, aquele aperto no peito vai passar. Por trás de cada olhar, de cada sorriso, há muito esforço, amor e fé.
Autismo infantil: a importância da observação precoce
Os detalhes, quando notados, podem mudar caminhos, abrir horizontes e dar um novo sentido à vida das pessoas. Na sala da psiquiatra da infância e adolescência, Dra. Roberta Parker Nicolau, os pacientes com suspeita de autismo chegam, muitas vezes, após uma percepção das professoras, que atualmente já têm maior noção sobre o desenvolvimento infantil, ou por meio de comparações comportamentais.
Com o intuito de ajudar a criança, os educadores orientam os pais a buscar uma avaliação para verificar como está o desenvolvimento do filho, se dentro da normalidade ou se apresenta desvios. “Outros pacientes chegam ao meu consultório encaminhados por psicólogos. Geralmente, quando eles pisam neste espaço, o tratamento já está em andamento, mas os psicólogos percebem alterações na reciprocidade social e dificuldades de interação, especialmente nas crianças pequenas, com muitas reatividades e inflexibilidades que excedem o esperado para a idade”, afirma.
Quem também costuma perceber mudanças no comportamento das crianças são os pediatras, já que possuem conhecimento sobre o desenvolvimento infantil e o que é esperado em cada faixa etária. A observação materna também é essencial: muitas vezes, é a mãe quem percebe algo diferente ao comparar o filho com irmãos ou outras crianças da família.

A busca por ajuda
Nesse contexto, o papel do profissional é entender as dificuldades enfrentadas pelos pais e lidar com empatia, pois o emocional da família já está fragilizado. “Um dos maiores estressores para um casal é ver o próprio filho doente ou em sofrimento. Por isso, o especialista precisa agir com delicadeza e oferecer apoio. Um diagnóstico de autismo não é transitório, é quase um modo de ser. Felizmente, as terapias podem proporcionar muitos avanços, dependendo da idade e da intensidade do quadro”, complementa a doutora.
Para um diagnóstico mais preciso e um plano de tratamento adequado, alguns exames complementares podem ser indicados, como a avaliação do Processamento Auditivo Central. Esse tipo de exame contribui para identificar dificuldades específicas que podem se confundir com sinais do autismo, evitando equívocos no laudo final. No entanto, muitas famílias ainda enfrentam desafios para acessar profissionais qualificados, devido às longas filas de espera e à escassez de atendimento especializado na rede pública e privada.
Entender a situação
“Costumo dizer que o mais importante é quando os pais percebem que temos experiência e paciência para realizar o diagnóstico. Apresento os critérios aos familiares e verificamos juntos se faz sentido, para facilitar a compreensão de como a criança funciona. Quando conseguimos dialogar com empatia, todos saem ganhando”, pondera Dra. Roberta.
É essencial que os pais entendam que o tratamento do autismo não é baseado em medicação. Porém, sintomas secundários como inflexibilidade, obsessões, dificuldades para dormir, fobias alimentares podem ser amenizadas com o uso de medicamentos, especialmente nos casos de pacientes mais agressivos, agitados ou ansiosos.
“Não é tão fácil na nossa realidade conseguir acesso a essas terapias especializadas. Acredito que vem melhorando, essa questão de olhar para a causa, mas falta muito investimento nessas questões. Quando o paciente não consegue via o Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelo convênio, o ideal é que façam os tratamentos particulares e isso acaba preocupando a família, por que temos a compreensão que é tudo muito difícil. Existem tratamentos e terapias que são por cinco anos ou talvez por mais tempo para atingir determinados objetivos”, explica a psiquiatra da infância e adolescência.

De repente, uma virada de chave
Fabiana Piucco Nunes Fritzen era mãe de primeira viagem do Nicolas. Estava conhecendo e desbravando a nova fase que a vida lhe proporcionou. Observava atentamente cada gesto do menino, como girar o bico da mamadeira ou o celular. Achava que tudo aquilo era natural de uma criança. Até que tudo mudou com uma ligação.
Era 2 de abril de 2019, Dia Mundial da Conscientização sobre o Autismo. A mãe de Fabiana, após assistir a uma reportagem na televisão, percebeu semelhanças entre os comportamentos mostrados na tela e os do pequeno Nicolas. Com o coração apertado, pegou o telefone e ligou para a filha, sugerindo algo que até então parecia distante: Nicolas talvez tivesse o espectro autista.
É comum que muitos pais tenham certa resistência em procurar um neurologista ou psiquiatra para avaliar o filho. Alguns por não acreditarem que algo esteja errado, outros por acharem que se trata apenas de uma fase. “Há pais que não buscam ajuda porque acreditam que a timidez da criança é algo herdado que eles também eram assim na infância e conseguiram superar. Outra questão delicada, que ainda persiste, é o medo do diagnóstico ou de um quadro mais grave”, é o que detalha a psiquiatra da infância e adolescência, Dra. Roberta Parker Nicolau.
No caso de Fabiana, ela não exitou e logo procurou ajuda profissional. “No mesmo dia eu já aceitei que o Nicolas tinha autismo. Se eu não aproveitasse a janela de oportunidades que a idade oferece, eu poderia perder um tempo precioso. Então decidi procurar um médico”, conta.
Não foi um momento fácil, o diagnóstico de Nicolas veio na primeira consulta, com 1 ano e onze meses de idade. Como Fabiana já havia estudado sobre o tema, ela aceitou se entregar e se doar na educação do filho, mesmo que tivesse que enfrentar novos desafios.
Foi por meio do método da Análise do Comportamento Aplicada (ABA) e uma avaliação dos marcos do desenvolvimento, o VB-Mapp – em português “Programa de Avaliação e Colocação de Marcos do Comportamento Verbal” – que Nicolas, aos três anos, começou a soltar as primeiras palavras.
“Eu realmente me doei o máximo que pude. Na época eu não deixava a televisão ligada, porque eu queria escutar tudo o que o Nicolas estava aprendendo e o som que ele emitia. Como o sonho de toda mãe é que a criança se comunicasse, eu deixava tudo no silêncio total e comecei a aplicar com ele as etapas da terapia”, relembra a mãe.
Com o passar do tempo, Nicolas foi criando habilidades, e sua mãe desejava estar presente em cada etapa do desenvolvimento do filho. Fabiana não se enxergava mais no antigo emprego, então sentiu a necessidade de estar presente e dar 100% de suporte ao Nicolas em casa, e, claro, teria mais tempo para levá-lo às terapias. Foi neste percurso que viu uma oportunidade de criar o seu próprio negócio.
Uma nova fase, o Adaptados do Menino Bê
Dentre tantos desafios que uma mãe atípica lida diariamente, retirar a fralda foi mais uma etapa a ser vencida, como Joziani enfrentou com seu filho Brayam. “Me preparei com dois meses de antecedência. Criei uma história social para ajudá-lo a entender o que estava por vir e evitar crises de ansiedade. Montei um livro de apoio com fotos dos banheiros que ele conhecia”, conta Fabiana.
Foram dez dias sem fralda. Até que, diante de uma situação inesperada, Fabiana precisou improvisar e mostrar para o Nicolas que era normal se sujar ao ir ao banheiro. Então, utilizou de uma boneca para ensinar, de forma lúdica, os passos de como ir ao banheiro. Foi com este ensinamento que Fabiana percebeu a falta de materiais específicos para crianças autistas, especialmente em temas cotidianos que envolvia saúde, como alimentação, higiene e rotina.
A partir dessa necessidade que a mãe passava, surgiu sua loja online, “Adaptados do Menino Bê” — nome inspirado no apelido carinhoso de Nicolas, chamado de ‘bebê’. “Eu vi que podia fazer muita coisa em casa. Não tinha dinheiro, mas queria proporcionar várias horas de terapia, porque hoje a gente entende que, dependendo do nível, são necessárias muitas horas de intervenção. Como eu não tinha recursos, comecei a estudar. Fazia os materiais à noite e aplicava de manhã”, comenta.
Foi nesse novo caminho que ela encontrou uma oportunidade não só de ficar mais próxima do filho, mas também de ajudar outras famílias e clínicas. Deixou o antigo emprego e passou a se dedicar integralmente ao novo empreendimento, que hoje fornece recursos pedagógicos para todo o Brasil – e, recentemente, realizou sua primeira venda internacional. “Para uma mãe atípica, é difícil conciliar a rotina com um emprego tradicional. Por isso é muito gratificante poder trabalhar em casa”, destaca a mãe empresária.
Fabiana percebeu o quão ricos são os materiais quando aplicados com constância e com acompanhamento de profissionais. Nunca imaginou que poderia ajudar tantas outras mães e clínicas, com recursos que desenvolvem e potencializam o autoconhecimento. Foram dois anos e meio sem televisão e sem vida social. Ela queria estar ali por inteiro: ouvir, apoiar, descobrir e ser, em essência, mãe. “Foi a melhor e mais difícil decisão da minha vida”, frisa.
O amigo de quatro patas: a terapia que acolhe e transforma
Além das terapias tradicionais, uma técnica que tem contribuído de forma significativa no desenvolvimento de crianças com TEA, é a cinoterapia, também conhecida como Terapia Assistida por Cães (TAC). Como pode um cão, com suas quatro patas, pelos macios e um sorriso que brota sempre que alguém lhe oferece um carinho, ser tão amado pelos seres humanos? Talvez não haja uma resposta exata, mas a verdade é simples: esses animais protegem, acolhem e, acima de tudo, cuidam de quem está ao seu redor.
“O cão libera muitos neurotransmissores responsáveis pelo bem-estar das pessoas. Ele não só ajuda, como beneficia na parte social, no desenvolvimento cognitivo, no emocional e nas habilidades motoras. Como o autismo envolve dificuldades na regulação comportamental, o cão atua como um mediador, transmitindo bem-estar”, explica a psicóloga cognitiva comportamental da infância e adolescência, especialista em Análise do Comportamento Aplicada (ABA) e TEA, Jussara Ghislandi Fretta.
A profissional conta ainda que no autismo é muito difícil conseguir desenvolver o contato visual, que é uma grande barreira do transtorno, bem como desenvolver a atenção compartilhada. São nestes casos que a cinoterapia ajuda na forma em que a criança ouve e interage com o ambiente.
Os cães de intervenção assistida são selecionados, socializados e treinados para atuar junto à criança. Nem todo cão, porém, está apto a esse trabalho. Saber todos os comandos, como responder ao nome, pular, deitar, buscar objetos, passar por obstáculos, exige treino e preparação. Como explica a psicóloga cognitiva comportamental da infância e adolescência, especialista em ABA e TEA, não são todos os cães que podem trabalhar nas sessões com a Intervenção Assistida por Animais (IAAS), as raças mais indicadas, além do Golden Retriever, são os Border Collie e o Labrador, pelo quesito de serem mais sociáveis e inteligentes.
Zeca, o cão terapeuta que ajuda a construir pontes de afeto e aprendizado
Entre esses cães está um Golden Retriever, chamado Zeca, vindo de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul (RS). Escolhido entre nove filhotes da ninhada, ele foi preparado desde cedo para seguir os passos do pai, Cadu, também cão terapêutico. Quando completou 45 dias, Zeca passou por testes para verificar suas tendências comportamentais e prever como ele seria quando adulto. Durante as provas, os profissionais avaliaram a atração social, facilidade para seguir os humanos, dominação social, sensibilidade visual, estabilidade, entre outros.
Aprovado, iniciou o treinamento com profissionais especializados por um ano. Jussara acompanhou todo o processo, viajando mensalmente até o RS. Após o adestramento, Zeca foi integrado ao ambiente familiar da psicóloga e ao espaço terapêutico onde atua hoje, ao lado de outras crianças e cães.
Juntamente com a terapia ABA, o animal é um instrumento de intervenção que fornece estímulos para o cérebro dos pequenos. “As conexões cerebrais no autismo são diferentes. A intervenção exige análise constante do ambiente e respostas naturalistas. O cão ajuda a construir essas pontes”, pontua a psicóloga cognitiva comportamental.
Como o diagnóstico do autismo está cada vez mais precoce, enquanto não há remédios que possam ajudar a diminuir os níveis, a terapia é a melhor solução no tratamento. “A criança não deixa de ser autista, mas com a intervenção precoce, podemos avançar para um melhor resultado. Avaliamos os marcos do desenvolvimento e, com o tempo, é possível estabilizar muitos desses sinais”, esclarece Jussara.
O casal que transformou dor em rede de apoio para famílias atípicas
Nos momentos difíceis, é preciso contar com uma rede de apoio que educa e acolhe os pais, que enfrentam desafios diários com seus filhos atípicos. Uma instituição que acolhe os autistas e familiares é a Associação Forquilhinhense de Apoio aos Autistas (AFAA). Apesar de ser recém criada na cidade, ela já contribui com diversas ações no município. Porém, não foi fácil criar a rede de apoio, desde o começo das tratativas para as operações, um casal se destacou por sua dedicação em oferecer um lar a quem precisava de ajuda em meio à incerteza.
Os pais do Davi e do Pedro, a pedagoga Dorys Felisberto e o advogado, Leandro Fenilli Felisberto, escolheram o amor e a compaixão como pilares para transformarem sua vivência com o autismo em uma jornada de luz e esperança. Com o lema “respeito, empatia e amor”, a mãe reuniu forças para iniciar discussões essenciais sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) que afeta seu filho Davi, de doze anos. Esse seu firme propósito de promover a inclusão e o respeito, criou um legado de transformação e apoio mútuo.
Em setembro de 2021, antes mesmo da criação da associação, oito pais se reuniram após a implementação de uma nova lei de políticas públicas voltadas aos autistas, em um curso de formação continuada promovido pela Secretaria de Educação de Forquilhinha. Dorys, que fazia parte da organização desse curso, percebeu que, assim como ela, muitos pais ainda enfrentam desafios semelhantes e careciam de apoio e orientação. Essa motivação a levou a fortalecer a voz dessas famílias, criando uma rede de apoio que faria toda a diferença.
A conexão de laços e a vontade de ajudar na luta de pessoas que não tinham as mesmas condições levaram Dorys e Felisberto a unirem forças para dar visibilidade a outras famílias. Assim, no dia 1° de novembro de 2022 a AFAA iniciou os atendimentos clínicos no espaço localizado na Avenida 25 de Julho, no Bairro Vila Lourdes, em Forquilhinha, com toda estrutura necessária para acolher e atender as crianças autistas.
Dorys e os demais membros da diretoria começaram a acolher as pessoas no novo espaço, ainda em processo de estruturação. Ela se recorda que as cadeiras de praia foram o primeiro assento de muitos que chegaram ao local, e cada membro da diretoria, com um gesto de carinho e dedicação, levava alimentos para compartilhar, criando um ambiente de acolhimento. Foi assim que, pouco a pouco, uma ideia que nasceu em meio a uma dificuldade, transformou-se em uma rede de apoio e esperança para todos que precisavam.
Cortes que curam: até a tesoura vira gesto de amor
Em média, 43 crianças e adolescentes participam de um projeto que oferece apoio aos familiares, especialmente às mães, na criação de filhos autistas, com suporte da fonoaudióloga e psicóloga da sede. Dorys Felisberto, tesoureira da AFAA, pretende expandir a equipe clínica com novos profissionais, mas o que realmente a emociona é uma ação voluntária realizada a cada duas semanas: o corte de cabelo. Para muitas famílias, esse gesto simples se transformou em uma verdadeira alegria.
Uma profissão que promove acolhimento e compreensão no ambiente escolar
A insegurança de se sentir diferente é um grande desafio, especialmente para quem está no espectro autista, quando percebe que o mundo ao redor segue um ritmo distinto do seu. Na escola, isso se intensifica, tornando cada dia um esforço para se adaptar às interações e padrões sociais que muitas vezes não fazem sentido. O tratamento de colegas e professores pode causar desconforto, e a forma de comunicação, fora do comum, gera barreiras na compreensão. Nesse cenário, a chegada de uma professora auxiliar pode ser transformadora: mais do que uma educadora, ela se torna um ponto de apoio, fornecendo acolhimento, compreensão e segurança em meio às incertezas do cotidiano escolar.
De acordo com a professora auxiliar e estudante de pedagogia, Ester Gomes Loureiro, os profissionais da escola desempenham um papel importante ao “fazer o meio de campo”, ensinando a todos a respeitar os limites do próximo e explicando que cada pessoa tem seu próprio jeito de ser, assim como um tempo único para se adaptar. Ester também destaca que a professora da turma, por ter um contato diário com as crianças, exerce uma influência ainda maior, sendo capaz de moldar melhor a percepção dos alunos. Ela enfatiza que, ao promover a compreensão das diferenças e das dificuldades de cada um, isso contribui significativamente para melhorar o relacionamento tanto dentro quanto fora da sala de aula.
Conforme a Dra. Roberta, a convivência escolar pode ser reveladora. A criança pode se mostrar excessivamente reativa, ter dificuldades para interagir com grupos ou ser muito tímida, chegando até a evitar o convívio, preferindo o isolamento e não compartilhando momentos com os colegas. “Sintomas como esses, como não buscar a troca, a comunicação, o interesse pelo rosto do outro ou por estar com outras crianças, são indicativos que precisam ser observados com atenção”, ressalta.
Desta forma, a professora auxiliar não está ali somente para ensinar o conteúdo acadêmico, mas também presta ajuda e compreende as interações sociais, oferecendo as ferramentas necessárias para navegar por esse mar de diferenças. O seu papel é fundamental para tornar o que parecia um ambiente hostil ou desconfortável, em um lugar seguro e inclusivo.
O papel dos colegas na adaptação escolar
Apesar de todo o cuidado ao explicar as situações para as mentes jovens, ainda há crianças que interpretam de forma exagerada o comportamento de colegas com TEA. Em seus momentos de auxílio aos alunos, Ester já presenciou casos em que algumas crianças tratavam o colega com autismo como se fosse um “neném”, assumindo que ele não seria capaz de responder por si mesmo. Diante dessas situações, a professora auxiliar reforça que tratar uma pessoa do espectro como inferior é um comportamento que precisa ser reavaliado. Desta forma, o meio utilizado para aula para que todos compreendam a situação é ter uma conversa mais profunda em sala de aula, reforçando em suas falas que embora a pessoa com TEA enfrente desafios maiores e tenha um tempo diferente para realizar algumas tarefas, ela possui a capacidade de fazer as coisas de maneira própria e única.
“Inicialmente as crianças demonstram curiosidade, por causa de algumas atitudes que eles vêem como diferentes deles, mas depois da curiosidade vem a empatia e o cuidado com o colega”, observou Ester. Com o tempo, à medida que as diferenças vão sendo compreendidas, as crianças começam a desenvolver um cuidado especial pelo colega que enfrenta maiores dificuldades para resolver as tarefas. Quando percebem que o amiguinho está tendo dificuldades, rapidamente se oferecem para ajudar de alguma forma, mostrando uma preocupação genuína e uma crescente empatia.
Entretanto, mesmo quando as intenções são as melhores, a professora auxiliar observa que, em algumas situações, os jovens confundem o ato de ajudar com o de fazer as coisas pelos colegas. “Se o professor não tiver um olhar atento com relação a isso, os demais alunos podem ver o aluno com TEA como alguém inferior a eles”, alertou Ester.
“A professora também deve transmitir isso para os alunos tendo sempre conversas sobre o respeito com o colega da sala independente da dificuldade dele”. Ester destaca que o principal ponto discutido e orientado para os alunos é que todos devem ser tratados de acordo com a sua individualidade, levando em conta que cada criança é única e que possui necessidades diferentes.
* Matéria escrita pelos acadêmicos da 7ª fase de Jornalismo, Henrique Ferreira, Letícia Cardoso, Monique Amboni e Pedro Passos