Assim que o sol se põe, a Avenida Centenário, via que corta a cidade de Criciúma, se torna palco de muitas feições. Becos e vielas dão sustento a mulheres que trabalham com a prostituição. Considerada uma das cidades mais seguras de Santa Catarina, segundo dados do Anuário 2024 do ranking “Cidades mais seguras do Brasil”, Criciúma é isso, menos para elas e tantos outros que são empurrados para a margem da sociedade.

Há 37 anos trabalhando como profissional do sexo na maior cidade do Sul Catarinense, Jennifer Alamin já passou por situações que retratam um outro lado de Criciúma: a violência e o preconceito. “Eu já tive que tirar a arma da mão de um homem pra ele não me matar”, lembra ao contar os episodios que já sofreu.

Todos os dias, o batom vermelho, a maquiagem esfumada e o salto alto são companheiros dela. Desde que chegou na cidade, Jennifer trabalha na prostituição. Rotineiramente, ela fica na região do bairro Santa Bárbara, uma das áreas nobres do município, onde outras mulheres também costumam se instalar.

Quando a noite cai, olhares e julgamentos são direcionados pras profissionais que ali estão. “Criciúma é extremamente conservadora e todo mundo fala na tradicional família brasileira como se a gente fosse cagada, como se a gente não tivesse família. E a gente tem”, relata com um olhar atento para a janela de cada carro que passava na avenida.

A Senhora da Prostituição, como gosta de ser chamada, foi uma das precursoras na cidade para que outras também fossem respeitadas. Entre anos de experiência, Jennifer lutou inúmeras vezes para proteger a própria vida do ódio da sociedade. “Eu já sofri todos os tipos de violência e muitas dessas vezes a gente não tinha quem procurar”, relembra.

E a lei?

Desde 2002, as profissionais do sexo figuram oficialmente na Classificação Brasileira de Ocupações, um código que identifica e classifica todas as ocupações existentes no mercado de trabalho. No entanto, ele não cria direitos trabalhistas nem regulamenta profissões. Mesmo assim, é um reconhecimento que, ao menos no papel, retira da prostituição o rótulo de crime. Todavia, isso não é suficiente para garantir os direitos assegurados a outras profissões. Férias, 13º salário e demais garantias trabalhistas dependem de um vínculo formal com algum estabelecimento – algo que, no caso da prostituição, entra em conflito com a lei.

“A exploração sexual é crime. Há uma regulamentação como atividade livre (prostitutas), mas o estabelecimento (prostíbulo), que pratica o ato ilícito de se aproveitar da prostituição comete crime”, pontuou a advogada previdenciarista, Josiane Pescador.

Mas, e no caso dos locais de entretenimento adulto? A delegada titular da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI) de Araranguá, Eliane Chaves, explica que manter estes estabelecimentos, também conhecidos como os famosos “cabarés”, não configura crime.

“Por vezes o local é um ponto de encontro, que serve bebidas, comidas, até o aluguel do quarto, desde que não cobre nenhuma vantagem pela prostituição em si”. Assim, as profissionais podem atender nestas casas de forma autônoma – com consentimento -. “Embora reconhecida como uma ocupação, [a prostituição] não é passível de virar um ‘emprego formal’ com carteira assinada”, complementa a delegada.

Ainda assim, algumas garantias podem ser conquistadas. Por meio da Previdência Social, essas mulheres podem contribuir como autônomas, preenchendo mensalmente a Guia da Previdência Social (GPS), também conhecida como o carnê do INSS. “Dessa forma, elas asseguram direitos como auxílio-doença, salário-maternidade e aposentadoria”, ressalta Josiane, revelando que, mesmo à margem da sociedade, ainda há caminhos possíveis para algum amparo.

Violentadas

Por trás dos vestidos curtos, salto alto e a maquiagem pesada, existe uma dura realidade: a violência na prostituição. E além dela, o medo do julgamento. A delegada Eliane Chaves lida de perto com essa situação. “Embora não seja crime, essa é uma atividade que fica oculta. Dificilmente alguém expõe que exerce”, explica. 

E isso abre espaço para a violência. Em um caso investigado por Eliane, um criminoso atacou ao menos sete vítimas nas cidades de Araranguá, em Santa Catarina (SC), e Vacaria, no Rio Grande do Sul (RS). Ataques que incluíram, principalmente, mulheres trans.

“Ele fazia contato por meio de um site e marcava encontro como se fosse um programa contratado. No momento da abordagem, no entanto, ele chegava com a arma de fogo, roubava os pertences delas e ainda praticava violências, como estupros, lesões e agressões”, conta Eliane, ressaltando a conduta violenta do agressor.

Durante as diligências do caso, a polícia chegou até algumas das vítimas. Mulheres trans que haviam sofrido crimes graves, incluindo extorsão mediante sequestro, cinco meses antes do início das investigações. Apesar da gravidade, não houve denúncias. Os nomes apareceram em meio aos itens roubados.

Infelizmente, a falta de denúncia, segundo Eliane, é comum. “Elas não procuram a polícia por qualquer coisa. Quando chegam até nós, é porque algo realmente grave aconteceu”, frisa a delegada. Parte da violência contra essas mulheres é invisibilizada pela sociedade e até por profissionais que deveriam oferecer ajuda.

Jennifer sentiu na pele esse preconceito, quando tomou um banho de extintor de um grupo de homens na rua. Na hora, ela voltou para o seu apartamento, se limpou e tentou ir atrás de justiça. “Quando eu cheguei na delegacia, o escrivão olhou pra mim e disse: ‘não to vendo nada de extintor em ti’. Dói né?”, relembra.

“O preconceito e essa cultura machista que a gente tem dentro da polícia, é nada mais do que o retrato da nossa sociedade. Se a nossa sociedade é assim, a nossa polícia é assim, a nossa escola é assim, os órgãos públicos em geral são assim. Então, a gente precisa de uma mudança profunda. E, em termos da polícia, cada vez mais capacitação”, argumenta a delegada.

A articulação entre os setores de saúde e segurança pública também é fundamental para o enfrentamento efetivo da violência. Para a delegada, as políticas públicas devem ir além da capacitação das forças policiais, atuando com os profissionais de saúde, que exercem um papel estratégico na identificação e encaminhamento de casos.

“Os serviços de saúde são uma grande porta de entrada de informações. Muitas pessoas que sofreram violência procuram primeiro os postos ou hospitais, seja por necessidade médica ou por não saberem a quem recorrer”, destaca Eliane.

Nesse contexto, o atendimento adequado e capacitado pode fazer a diferença no acolhimento e no encaminhamento das vítimas aos órgãos competentes. Esse não foi o caso da Jennifer.

Eliane também chama atenção para casos em que o preconceito interfere diretamente na qualidade do atendimento prestado às vítimas. “Eu já peguei casos de vítimas de violência sexual, que exerciam a atividade da prostituição, que não receberam o primeiro atendimento de forma adequada”, conta. Ela lembra ainda que, sem o atendimento correto, as provas de um crime podem se perder. Esse foi o caso da Jennifer.

Essa troca e comunicação entre os setores e, consequentemente, o atendimento de qualidade no primeiro momento, é um direito. O básico para qualquer cidadão que sofreu algum tipo de violência, segundo a delegada. Quando o médico da emergência trata com indiferença a dor de alguém, o que vai garantir que a pessoa procure uma autoridade em busca de ajuda?

“Essa informação para a polícia tem que acontecer. E o contrário também, da polícia para os órgãos de saúde quando necessário”, pontua Eliane.

A vida na noite

Quando a noite chega e o trânsito agitado se acalma, é a hora delas. Desde a escova no cabelo, até quando o zíper do vestido se fecha, a preparação traz dois sentimentos para Jennifer: orgulho pelo que faz e incerteza sobre o caos da noite.

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Contatos de ajuda

Como qualquer cidadão, a busca por ajuda em órgãos de segurança contempla a integridade das profissionais do sexo. O Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes (NAVIT), do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), é um desses grupos.

“O objetivo do núcleo é atender às vítimas de crimes cometidos com violência e grave ameaça, e a seus familiares, garantindo um apoio humanizado”, explica o promotor de justiça, Samuel Dal Farra Naspolini.

Além disso, o NAVIT oferece o acesso ao direito à informação, orientação jurídica, proteção, reparação, participação e encaminhamento para acolhimento psicológico, social e de saúde.

“É um apoio para todas as pessoas que sofreram qualquer tipo de violência. Toda vítima pode procurar o Núcleo e se informar sobre o andamento do processo e os seus direitos”, ressalta o promotor. Ou seja, isso inclui também as profissionais do sexo que são vítimas de crueldade nas ruas.

Um acompanhamento feito para estar com elas desde o primeiro momento da prática do crime até a etapa final do processo. Inclusive, passando pela fase judicial. O apoio do NAVIT, muitas vezes, é o colo que a vítima necessita. Mas além dele, dicas de segurança são essenciais para se proteger.

O núcleo do MPSC pode ser um exemplo a ser seguido por outros órgãos de segurança. Sem julgamento, para que o que aconteceu com Jennifer, e ocorre com tantas outras, não se torne normal. “Eu quero que as meninas saibam que elas podem sim procurar uma delegacia da mulher. A gente lutou por isso”, complementa a Senhora da Prostituição.

Refletindo sobre a rotina, ela terminou a entrevista com um desejo. “O espaço foi aberto lá atrás e hoje a gente vê muitas meninas saindo da prostituição e indo estudar, entrando no mercado de trabalho. Isso é o que eu quero pra elas”, finaliza, enquanto se preparava para sair da luz amarela do poste e esperar seu primeiro cliente da noite.

*Matéria escrita pelos acadêmicos da 7ª fase de Jornalismo, Ana Laura Gervasio, Luana Miguel, Luís Casagrande e Manuela Linemburguer