O momento que deveria ser marcado por cuidado, acolhimento e respeito à vida, muitas vezes se transforma em um cenário de dor, humilhação e abandono para muitas mulheres. Gritos, toques sem consentimento, procedimentos forçados e ofensas verbais ainda fazem parte da realidade de diversas maternidades e hospitais no Brasil.

A violência obstétrica, embora muitas vezes silenciada, persiste em diferentes contextos de atendimento à gestante. Foi o que viveu Rayssa Élen da Silva Pereira, de 23 anos. Em 2020, durante sua primeira gestação, ela enfrentou uma sequência de negligências e maus-tratos no Sistema Único de Saúde (SUS), após ser diagnosticada com um aborto retido.

Do diagnóstico ao abandono

Durante um exame de rotina, já na metade da gestação, Rayssa foi informada de que o bebê não estava se desenvolvendo. A ausência de um acompanhamento adequado no pré-natal fez com que ela descobrisse o problema com cerca de oito semanas de atraso. O diagnóstico exigia a realização de uma curetagem — procedimento cirúrgico para retirada do feto.

No entanto, segundo ela, o sofrimento começou já dentro do hospital, de forma psicológica. “O médico falou: ‘Se tu quiser tirar, eu tiro.’ Parecia que ele estava falando de um bicho, de um objeto. Perguntei se eu teria que ficar internada e como seria o procedimento. Ele, com a voz alterada, na frente de outras grávidas, respondeu: ‘Tu quer tirar isso ou não?’ Peguei minhas coisas e fui embora”, contou Rayssa.

Dados alarmantes

De acordo com dados divulgados em 2024 pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), cerca de 45% das gestantes e puérperas atendidas pelo SUS no estado já sofreram algum tipo de violência obstétrica. No setor privado, esse índice também é expressivo: 30%. Entre os principais abusos estão agressões físicas, verbais e emocionais, além de procedimentos realizados sem consentimento.

Mobilização social

Diante da recorrência dos casos, uma petição pública organizada por moradores de Araranguá e região tem ganhado força na internet. O abaixo-assinado, que já ultrapassa 2.300 assinaturas, pede um posicionamento do Hospital Regional de Araranguá contra práticas de violência obstétrica.

O documento aponta denúncias de comentários agressivos, falta de empatia, intervenções sem autorização, negligência no cuidado e posturas autoritárias atribuídas a uma profissional da obstetrícia que atua na unidade. Depoimentos de vítimas também estão disponíveis na página da petição online.

Depoimentos que constam na petição pública

Marcas que permanecem

As consequências da violência obstétrica vão além do momento do atendimento. Segundo a psicóloga Soraia Rabelo, casos como o de Rayssa podem desencadear transtornos graves, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e o Transtorno Depressivo Maior (TDM).

“Os sintomas podem comprometer o estado emocional da mulher e, em muitos casos, interferir até nos cuidados com o recém-nascido. O tratamento exige uma abordagem interdisciplinar, com apoio psicológico e psiquiátrico”, explica Soraia.

Ela ressalta que a psicoterapia é uma ferramenta essencial para reconstruir a autoestima da mulher e ajudá-la a lidar com o trauma. “Muitas desenvolvem medo de uma nova gestação ou evitam completamente passar pela experiência novamente”, completa.

Para a psicóloga Bruna Tristão, os impactos também podem se refletir no comportamento materno. “Algumas mães desenvolvem uma superproteção intensa em relação ao filho, têm dificuldade de confiar em creches ou em qualquer pessoa que vá cuidar da criança. O medo é generalizado, e esse é um dos pontos que trabalhamos em consulta para evitar que esse ciclo continue”, diz.

Reportagem escrita pelos acadêmicos do curso de Jornalismo da UniSatc, Mariana Duarte e Vinícius Vieira, sob a orientação do professor Filipe Gabriel.