“Nós começamos a sentir um cheiro de liberdade e vimos que iríamos ser tratados que nem gente”, relembra Vilson Omar da Silva Nunes, de 67 anos, enquanto conta a própria história. Quilombola, ele mora em uma das 28 comunidades remanescentes de Santa Catarina. Com mais de 200 anos, o quilombo São Roque busca formas de manter as tradições vivas através do turismo. 

Em meio a inúmeras espécies de árvores e uma rica natureza, a Comunidade Quilombola de São Roque carrega uma cultura ancestral. A maior parte de seu território fica em Praia Grande, no Extremo Sul catarinense. As terras também se estendem ao município de Mampituba, no Rio Grande do Sul.

Nos mais de 7 mil hectares, as famílias que vivem no local cuidam do espaço e dos costumes que descendem de ex-escravos africanos, quando buscavam melhores condições de vida e se refugiaram na região. Atualmente, moradores do quilombo estão apostando no empreendedorismo como forma de preservar o ambiente em que vivem. Resultado de luta e resistência. 

OS CONTOS QUILOMBOLAS 

Hoje é uma comunidade quilombola que está investindo no turismo. Antes, uma rede de refúgio para escravos. Assim foi com o quilombo São Roque, também conhecido como Pedra Branca. A cada um que fugia dos seus senhores, era uma parte da história nascendo. 

Os que fugiram da Fazenda dos Nunes ficaram na região do Rio Gorgonho e Faxinalzinho. Já aqueles que vieram da Fazenda dos Monteiro se estabeleceram na região do Rio Josafaz e os escravizados oriundos da Fazenda dos Fogaça permaneceram na região do Rio Mampituba (RS). 

Vilson Omar da Silva Nunes, griô da comunidade
Foto: Luís Casagrande

Todo quilombo possui os seus griôs. Um cidadão reconhecido como herdeiro dos saberes e fazeres da tradição oral. Ele é a pessoa que sabe tudo sobre a sua cultura e faz questão de levar isso adiante. 

Um desses griôs é Vilson Nunes, o seu Vilson. Ele nasceu e vive até hoje na Pedra Branca. Descendente de escravos, mora na mesma casa dos seus antepassados quando vieram para o local.

Paulo Volnei de Aguiar, griô do quilombo
Foto: Luís Casagrande

Paulo Volnei de Aguiar tem 65 anos e também é um dos griôs e coordenador da Associação de Remanescentes dos Quilombos de São Roque, criada em 2004 com o objetivo de lutar pelos direitos das terras onde fica a comunidade. 

Mas essa é uma história que deve ser contada pelas vozes de quem está lá. Vilson e Paulo relatam as suas vivências e também algo difícil de enfrentar: o preconceito. 

QUILOMBOLAS E O EMPREENDEDORISMO INCLUSIVO

Com o objetivo de gerar renda e ajudar a manter a qualidade de vida, os quilombolas de São Roque estão apostando no ecoturismo: uma forma sustentável de fazer turismo, ajudando a conservar o meio ambiente e, ainda, apoiar as comunidades locais. A gastronomia também ajuda a impulsionar os sabores do quilombo.

AGENTES DE INCENTIVO 

Pedra branca ao fundo da foto
Foto: Luís Casagrande

As belezas naturais do território atraem pessoas de diversas regiões. Como forma de manter essa cultura viva, desde 2018, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Sebrae, tem atuado junto a duas comunidades quilombolas do Sul de Santa Catarina com objetivo de desenvolver o empreendedorismo.

Em Praia Grande, a ideia da organização é iniciar um projeto, ainda em 2025, com o turismo de base comunitária (TBC). Um modelo que oferece ao turista a oportunidade de conviver com a natureza a partir da perspectiva das comunidades, apreciando a culinária e as manifestações culturais tradicionais.

“Quando a gente fala de artesanato, de gastronomia, como é que a gente vai comercializar isso? A forma mais sustentável, é você manter as comunidades vivas por meio do turismo de base comunitária”, evidencia a analista de projetos do Sebrae, Juliana Ghizzo. 

Ações como essa, de preservar a cultura por meio do ecoturismo, ajudam a manter as tradições quilombolas. Sem elas, os moradores acabam saindo do local em busca de outras oportunidades. “Se eles não têm uma atividade de empreendedorismo, eles vão acabar estudando e trabalhando fora. Então os jovens começam a estudar, vão trabalhar no comércio local e saem da comunidade. Quando a gente consegue ter uma atividade lá, a gente mantém essa cultura”, acrescenta Juliana. 

E aí entra a importância de um agente incentivador para esses povos. Como o Sebrae, por exemplo, que está acompanhando a Pedra Branca. “É uma forma de levar renda para essas comunidades e de agregar valor por meio da cultura deles. Não levar coisas novas para se fazer, mas utilizar o que já se faz como diferencial competitivo”, enfatiza a analista.

Barracas de turistas que estavam acampando no quilombo 
Foto: Luís Casagrande

Novos passos estão previstos, como reunir a comunidade e ajudá-la a se desenvolver. O objetivo é fazer um diagnóstico de como está funcionando o turismo no quilombo e identificar os pontos fortes. “Agora queremos de fato embalar isso tudo e poder comercializar. Vamos fazer a primeira reunião em campo com eles, ainda neste mês, e depois a gente vai ter um plano definido com as ações”, idealiza Juliana.

Esses trabalhos já foram realizados em outras comunidades do estado, como a Comunidade Quilombola Morro do Fortunato, em Garopaba. “Lá eles têm uma prática de participação na feira da agricultura familiar. Então a gente trabalhou com eles, muito forte, na questão da rotulagem das geleias, para que pudessem vender na feira”, ressalta a analista.

Implantar o TBC é também um desafio, já que essas comunidades naturalmente vivem isoladas e precisam de investimentos na infraestrutura. Uma responsabilidade do poder público, que precisa dar atenção para serviços de saúde, educação, saneamento básico e segurança. 

EXPERIÊNCIA 

Janela da casa de um morador 
Foto: Luís Casagrande

O turista procura esse tipo de atividade devido a rica experiência e pelo impacto cultural nas suas vidas, já que são os quilombolas que recebem e comandam as atividades. 

“Isso aqui é um paraíso, não é?” comenta o turista Ramon Borges. Morador de Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, ele estava na comunidade pela segunda vez. Montanhista, Ramon foi atraído pelas paisagens que fazem o olho de qualquer um brilhar. 

Legenda: Ramon Borges, turista
foto: Luís Casagrande

“É uma comunidade quilombola muito preservada. O Eliseu recebe a gente muito bem e tem um propósito com a cultura aqui”. Esse foi um dos motivos que fez com que Ramon voltasse na comunidade. 

Além desse, outro propósito chamou a atenção dele. “E saber que eles recebem esse valor, esse sustento nosso e faz disso um bem pra comunidade e pro ambiente geral. É importante, pois o local se mantém preservado e a gente pode voltar aqui”, conta o montanhista. 

Ramon Borges, turista

Foto: Luís Casagrande

LUTA QUILOMBOLA 

Terras da comunidade São Roque 
Foto: Luís Casagrande

Segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Santa Catarina tem 4.447 quilombolas. Eles estão distribuídos em 28 dos 295 municípios do estado e representam 0,06% da população catarinense. Praia Grande ocupa a 9ª posição, quando se fala em números de pessoas que se identificam como quilombolas, sendo 244 moradores. 

A pesquisa também apontou que 86,96% dos que moram em Santa Catarina não estão em territórios oficialmente delimitados para essa população. Como é o caso do quilombo São Roque. Os moradores estão desde 2004 na luta para conseguir a titulação. Naquele ano, criaram a Associação dos Quilombolas de São Roque, com o objetivo de unir forças entre os moradores. 

Em 2024, após 20 anos desde o início das negociações, foi publicado o Decreto Presidencial nº 12.180, no dia 20 de setembro, no Diário Oficial da União. Um marco importante no processo de titulação da Comunidade Quilombola São Roque, localizada nos municípios de Praia Grande, em Santa Catarina, e Mampituba, no Rio Grande do Sul. 

O decreto de 2024 reconheceu a existência das relações territoriais e históricas da comunidade quilombola São Roque na região, delimitando uma área de, aproximadamente, 7,3 mil hectares. Dentro do território, foi dado prosseguimento na regularização fundiária desta área de 4,6 mil hectares, que não está sobreposta pelos Parques Nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, e agora é passível de desapropriação. 

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), escritório de Santa Catarina, o instrumento declara de interesse social os imóveis rurais abrangidos pela área de 4,6 mil hectares do território. “Isso vai permitir a gente desapropriar propriedades privadas, promovendo a desintrusão e a titulação definitiva em nome da associação quilombola”, pontua o antropólogo da divisão de territórios quilombolas do Incra/SC, Marcelo Spaolonse.

Agora o instituto é responsável pelo processo de regularização fundiária, já tendo realizado a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) em 2007 e Portaria de Reconhecimento do território quilombola em 2018.

“Estamos em um momento muito especial do processo. Agora temos a obrigação de fazer um trabalho de avaliação dessas terras, em cada um dos imóveis que está dentro desses 4,6 mil hectares”, aponta Spaolonse. 

O instituto pretende iniciar os trabalhos com a comunidade de Praia Grande depois que finalizar a regularização com a Comunidade Quilombola Família Thomaz, em Treze de Maio. “No segundo semestre de 2025 queremos iniciar com a Praia Grande. É um trabalho criterioso, com pesquisa de mercado de terras, situação de relevo, qualidade, medição da área para depois chegar em um valor indenizatório e fazer a titulação para os quilombolas”, planeja o antropólogo. 

Já para aqueles que estão em cima dos dois parques, a negociação continua entre Incra, ICMBIO e comunidade, mas sem previsão. “Mas eu espero que as futuras gerações cuidem e olhem com um carinho pra esse lugar aqui”, pede seu Vilson, enquanto olha para o lugar que foi criado.

Como dizia Zumbi dos Palmares: “É chegada a hora de tirar nossa nação das trevas da injustiça racial”. É obrigatório e necessário. O sangue de uma desigualdade, chamada escravidão, consagrou as terras que hoje vivem os quilombolas de São Roque. É preciso um olhar atencioso do poder público, que despreza descaradamente a comunidade, como eles mesmo falam.  

 
Vilson Omar da Silva Nunes, griô da comunidade
Foto: Luís Casagrande

Este é um projeto produzido pelo acadêmico de Jornalismo da UniSatc, Luís Casagrande.