Elas trocaram os saltos pelos jalecos, os cadernos de anotações pelos tubos de ensaio, e fizeram da ciência o palco de suas vidas. No dia 11 de fevereiro, o mundo celebrou o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. Criada pela ONU em 2015, a data, além de um tributo, é um lembrete de que a ciência precisa de todas as mentes brilhantes – independentemente do gênero.
Dentro de um movimento crescente de mulheres que estão transformando o campo da ciência, figuras históricas como Marie Curie e Ada Lovelace são amplamente reconhecidas. No entanto, a história das mulheres que fazem a diferença segue sendo escrita, com novas vozes surgindo e deixando sua marca. Algumas dessas cientistas, embora não mundialmente reconhecidas (ainda), têm um impacto tão significativo quanto as que vieram antes delas.
É o caso de Beatriz Bonetti e Vanessa Olivo Viola, pesquisadoras do Centro Tecnológico (CT) Satc, cujas contribuições enriquecem o cenário científico e inspiram futuras gerações.
Entre campo e laboratório: a rotina de uma pesquisadora
Desde pequena, Vanessa queria entender o funcionamento das coisas. O que fazia um experimento dar certo? Como era possível transformar matéria-prima em produtos úteis? Fascinada pelos processos químicos, decidiu que não queria entrar no mercado de trabalho sem experiência e, ainda no ensino médio, optou por um curso técnico em Química. Foi a primeira grande decisão que moldaria sua trajetória.

A indústria foi o primeiro laboratório de Vanessa. Entre máquinas, reações químicas e desafios práticos, desenvolveu um olhar afiado para processos e soluções. Mas foi quando ingressou no curso de Engenharia Química que o caminho começou a se cruzar com o mundo da pesquisa. Com o intuito de um dia se tornar professora, se candidatou a uma bolsa no CT Satc. “Ali, tudo mudou”, relembra.
Para aprofundar seus conhecimentos, concluiu um mestrado na área e hoje divide a rotina de pesquisadora fazendo também um doutorado. Uma rotina marcada pela dinâmica e intensidade do ambiente científico. Em um dia, ela está no campo, coletando amostras de solo; no seguinte, está manipulando equipamentos de alta tecnologia nos laboratórios.

Ao longo da carreira, participou de projetos de grande relevância, como o da Zeólita, um material utilizado na purificação de gases e líquidos. Em colaboração com a Carbonífera Metropolitana, também foi peça-chave no desenvolvimento de uma solução inovadora para o reaproveitamento de rejeitos industriais. “Cada dia traz um novo desafio, o que torna a profissão ainda mais gratificante”, afirma.
Vanessa alcançou o lugar que sempre desejou: a linha de frente da pesquisa, onde explora, descobre e aplica a ciência para transformar o mundo ao seu redor. Hoje, também conquistou o sonho de ser professora, mas ele se tornou um plano secundário. O verdadeiro espaço da engenheira é no campo da pesquisa, onde se sente mais realizada e impacta diretamente o futuro da ciência.

Ciência, educação e maternidade
Enquanto isso, em outro canto do CT Satc, Beatriz Bonetti trilhou um caminho diferente, mas igualmente desafiador. Desde criança, o sonho dela era claro: queria ensinar. Exigia ser chamada de “professora Beatriz”, um nome que inventara, e imaginava suas aulas, seus alunos e o impacto que teria ao compartilhar conhecimento.
No entanto, a jornada até a sala de aula foi longa e cheia de curvas inesperadas. Vinda de escola pública, Beatriz batalhou por cada conquista. Tornou-se engenheira ambiental e sanitarista, depois mestre e doutora em Engenharia de Materiais. Mas foi ainda no estágio que percebeu que a pesquisa também poderia ser um caminho para a educação. “Foi quando eu percebi que a ciência poderia ser tão vasta, tão cheia de possibilidades”, conta.


Com essa descoberta, se lançou ao mundo. Foi estudar fora, enfrentou desafios acadêmicos e culturais, e chegou a conquistar uma bolsa para estudar nos Estados Unidos. Mas, então, veio a pandemia e os planos foram interrompidos. “Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida”, relembra.
Mas se uma porta se fechava, outras se abriam. Iniciou os trabalhos no CT Satc como pesquisadora visitante e, pouco tempo depois, foi convidada a assumir a coordenação de um projeto da Repsol, o primeiro da instituição junto à Agência Nacional de Petróleo. “Foi um marco para a Satc e para mim”, diz.

Paralelamente, Beatriz viveu uma experiência ainda mais transformadora: a maternidade. Gerar uma nova vida enquanto liderava um projeto desafiador trouxe um significado ainda mais profundo para a pesquisadora. “O maior desafio é conciliar ser uma grande profissional e uma grande mãe”, ressalta.
No auge da coordenação do projeto, engravidou e, com a chegada do bebê, precisou se afastar por alguns meses, confiando na equipe para dar continuidade ao trabalho. “Mulheres enfrentam desafios únicos na ciência diferentes dos homens. Precisamos constantemente provar que somos capazes de estar nos dois mundos, e a maternidade só reforça essa força”, reflete.
O desafio de ser mulher na ciência brasileira
A luz fria dos laboratórios reflete-se nos olhos atentos das pesquisadoras. Seus rostos, marcados pela dedicação, contam histórias de superação em um cenário ainda desigual. A ciência brasileira avança com a crescente presença feminina, mas os desafios persistem.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2023, as mulheres representavam 52% dos pesquisadores em grupos de pesquisa no Brasil, ultrapassando os homens (48%). Um relatório da Elsevier-Bori indica que, em 2022, 49% da produção científica nacional contou com pelo menos uma autora, um aumento expressivo em relação aos 38% registrados em 2002. Apesar desse progresso, o Brasil ainda enfrenta barreiras estruturais que dificultam a ascensão feminina na ciência.

A professora doutora em Ciências Morfológicas, Rossana Soletti, que integra o Parent in Science, destaca que a desigualdade de gênero se evidencia na dificuldade das mulheres em alcançar cargos de liderança.
“Mesmo com mais mulheres entrando em posições de liderança na ciência, ainda estamos muito longe da equidade. Se analisarmos os laureados com o Nobel das últimas décadas, por exemplo, veremos que pouca coisa mudou. Mulheres continuam representando uma fatia extremamente pequena dos ganhadores. Ainda há muita coisa para avançar”, explica.
Conforme Rossana, mais que uma questão de equidade, a presença feminina na ciência é também um avanço do conhecimento e de novas possibilidades. “Se uma menina não vê nenhuma mulher na ciência, dificilmente se imagina nesse caminho. Precisamos de mulheres pesquisando temas relevantes para todas nós”, enfatiza.
Maternidade e carreira: a busca pelo equílibrio
A chegada da maternidade traz desafios ainda maiores. A sobrecarga do trabalho doméstico e dos cuidados familiares recai majoritariamente sobre as mulheres, dificultando o desempenho acadêmico. “Ciência não é um trabalho que se faz das 8h às 17h. Experimentos exigem longas horas, escrita de projetos demanda dedicação extra, congressos e viagens ocorrem frequentemente. Como conciliar tudo isso com os cuidados com um bebê?”, questiona Rossana.
O impacto da licença-maternidade na produtividade acadêmica é significativo. O afastamento temporário pode levar à redução de publicações e financiamentos, comprometendo a competitividade da pesquisadora. “Menos produtividade significa menos financiamento, que leva a menos publicações e menos chances de crescimento na carreira. Muitas mulheres acabam se afastando da ciência por conta da maternidade”, acrescenta.
Para mitigar esse impacto, movimentos como o “Parent in Science”, fundado pela pesquisadora Fernanda Staniscuaski, têm sido essenciais. Desde 2016, o grupo propõe políticas institucionais que considerem a maternidade na avaliação acadêmica, garantindo que cientistas mães não sejam penalizadas por pausas na carreira.

Mas, segundo a professora, áreas como saúde da mulher e desenvolvimento gestacional ainda carecem de estudos aprofundados, evidenciando a necessidade de mais pesquisadoras no campo.
O peso dos estereótipos e a necessidade de mudança
Para a psicanalista Amanda Figueiredo, os desafios enfrentados pelas mulheres na ciência são um reflexo da desigualdade estrutural presente em toda a sociedade. “A ciência, assim como outras áreas, reproduz padrões culturais e expectativas sobre o que é esperado das mulheres. Muitas vezes, existe uma percepção de que elas têm menos aptidão para áreas como exatas, enquanto são mais associadas ao cuidado e à sensibilidade”, analisa.
Ela ressalta que essa visão essencialista impacta diretamente as oportunidades das mulheres, reforçando a segregação de gênero nas profissões científicas. “As meninas crescem ouvindo que são menos habilidosas para matemática e lógica, o que pode influenciar suas escolhas profissionais. Precisamos desconstruir essas ideias desde cedo, para que mais mulheres se sintam confiantes para seguir carreiras científicas”, pontua Amanda.

Outro aspecto relevante é a forma como o ambiente acadêmico encara a maternidade. “Existe um paradoxo: a sociedade espera que a mulher tenha filhos, mas, quando isso acontece, ela passa a ser vista como menos produtiva. Isso gera um estigma que pode levar à estagnação ou até ao abandono da carreira científica”, alerta.
Representatividade feminina
Um ambiente verdadeiramente igualitário é um dos principais objetivos de mulheres que atuam na ciência, mas para que isso ocorra, é necessário que haja mudanças estruturais e culturais.
“A responsabilidade não pode recair apenas sobre as mulheres. As instituições, os gestores e a sociedade como um todo precisam repensar como estão tratando a participação feminina na ciência. Só assim será possível construir um futuro mais justo e inclusivo para todas”, conclui a psicanalista.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Rossana complementa afirmando que é preciso que as instituições tenham políticas claras sobre o espaço das mulheres, com orientações, treinamento e penalizações quando elas ocorrem.
“Situações rotineiras, como indagar uma pesquisadora em uma entrevista de trabalho sobre filhos ou planos de maternidade não podem ocorrer. Isso não pode ser um critério para ela conseguir ou não uma vaga em um programa de pós-graduação, por exemplo”, destaca.
Situações de assédio também são inadmissíveis, segundo a professora. “Essa ainda é uma queixa grande de muitas mulheres e há movimentos de cientistas que realizam trabalhos de campo, por exemplo, pedindo mais responsabilidade das instituições nesse sentido”, enfatiza.
Nova geração visa mudar estatísticas
Dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) mostram que, globalmente, as mulheres representam apenas um terço dos pesquisadores. E a presença delas é ainda menor em áreas como engenharia e ciência da computação, com 28% e 40% de participação feminina, respectivamente. Mas essa é uma realidade que, se depender da nova geração, está prestes a mudar.
Monique é determinada. Mesmo ainda cursando o quarto ano de Engenharia de Computação, ela sabe que pode chegar longe. Mas, para isso, um longo trajeto da carreira, a estudante terá que trilhar sozinha. Ou, pelo menos, sem a companhia de outras amigas. Monique é uma das poucas mulheres na sala durante as aulas – e também na parte técnica do mercado de trabalho.
No entretanto, isso nunca foi um empecilho para a futura engenheira. Desistir jamais fez parte dos planos. Pelo contrário, Monique decidiu usar as adversidades como um combustível para chegar ainda mais longe no caminho que está percorrendo.
Agora, Monique quer inspirar outras mulheres a seguirem seus sonhos na engenharia e na ciência. Ela sabe que o caminho pode parecer desafiador, mas também acredita que, quanto mais mulheres ocuparem esses espaços, mais natural será a presença feminina nessas áreas.
O futuro da ciência é plural
As histórias de Vanessa, Beatriz e Monique são relatos individuais, mas também reflexos da trajetória de mulheres que desafiam as estatísticas e ocupam espaços na ciência. Elas enfrentam barreiras, reconstroem planos e se reinventam diante das adversidades.

Para o pró-reitor de Pesquisa e Inovação do CT Satc, Luciano Bilessimo, essas mulheres provam que a ciência não tem gênero – tem paixão, dedicação e um desejo incessante de transformar o mundo.
“A contribuição das mulheres na ciência é indispensável. Elas trazem novas perspectivas, criatividade e inovação para as mais diversas áreas. Precisamos continuar incentivando e apoiando sua participação para que a ciência seja cada vez mais plural, diversa e representativa”, finaliza.